quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Mistérios Modernistas


    Escrever sobre arte ou sobre artistas e suas obras é sempre um desafio. Por vezes é feito sobre grandes dilemas, entre gosto pessoal, material, suporte, linguagem, valor etc. numa série de pressupostos definindo por um conjunto de regras estéticas o que naquele momento se entende como arte.  Em filmes que abordam o tema e lançam olhares sobre esses dilemas, podemos observar maneiras que a linguagem cinematográfica aborda e fazem um diálogo entre arte, artista e suas obras. Em Mistério de Picasso de 1955 e Pollock de 2001, 
dirigido respectivamente por Henri Georges Clozout e Ed Harris, o tema aparece nos artistas e suas pinturas através imagem cinematográfica, e desdobra-se num dialogo entre os artistas retratados, obras e o olhar de cada diretor num documentário-ficcional ou uma ficção-documentada e já em A Dama Dourada de 2015, Simon Curtis utiliza o cinema para contar a historia de como uma das mais conhecidas obras de Gustav Klimt atravessou o atlântico. 

    Picasso o pintor modernista, através da direção de Henri Clozout, coloca a tela em branco em que pinta, como a tela do cinema, e suas pinceladas  vão tomando conta do quadro até a finalização da pintura. Várias pinturas são feitas na tela, Picasso parece fazer um speed painting prevendo já os atuais tutoriais de pintura ou desenho em velocidade acelerada, enquanto uma música clássica acompanha, ganhando dramaticidade, as pinceladas do artista sobre o quadro branco. Entretanto nem Clozout e nem Picasso pretendem fazer do filme um tutorial de pintura,  e sim investigar o processo do artista! Essa associação é apresentada já no começo do filme com Clozout falando sobre a apreciação de uma obra de arte, seja, por exemplo, a música de Mozart ou a pintura de Rembrant, e o desconhecimento, de um possível fruidor da obra, do processo que passa o artista durante a pesquisa e produção de sua obra enquanto abre-se uma luz sobre a figura do pintor evocando, na silhueta formada,  "O pensador" de Rodin. Acompanhamos Picasso em direção à mesa de desenho, enquanto acende um cigarro, e a câmera nos apresenta seu atelie em preto e branco, modificado,  banhado pela luz escolhida pelo diretor e seu fotografo- no caso um Renoir* - construindo um ambiente de mistério em torno da aura do artista gênio. Clozout, ao adentrar o processo de Picasso evocando obras consideradas clássicas constrói a imagem de obra-prima sobre Picasso, deixando que as pinceladas corram sobre a tela num momento de apreciação e troca. O trabalho em conjunto leva a  uma discussão sobre a narrativa feita por Picasso nos últimos quadros pintados, que diz "você pediu emoção, eu dei emoção", assina seu nome em um quadro e posiciona-se  embaixo do feixe de luz que invade  milimetricamente posicionado para colocar o artista de volta em sua aura misteriosa.

     Ed Harris por sua vez apresenta o processo de Jackson Pollock através de uma narrativa clássica, com composições coloridas, aúdio acompanhando as reviravoltas gráficas e pontos chaves,  mostrando o auge da carreira do "maior pintor modernista da América" e sua conturbada vida familiar e profissional.   A história do filme se passa no entre guerras e Ed Harris dirige e atua como Pollock experimentando dessa forma três processos, além da direção e atuação, entender e tentar mostrar indagações do artista retratado recriando a experiencia vivenciada por Pollock. O pintor que foi aclamado pela crítica com seu action-painting, tinha como referência a pintura modernista especialmente abstrata e  o surrealismo, tendo contato com Max Ernst e um relacionamento conturbado, devido, principalmente, ao seu alcoolismo, com Lee Krasner, torna-se um marco para o expressionismo abstrato. Picasso já era considerado um gênio da pintura, enquanto Pollock via nele uma inspiração e uma certo sentimento de competição demonstrada em algumas falas, quando Pollock está bêbado com um amigo e ele mesmo se compara à Picasso colocando-se como o próximo "maior pintor modernista" e outra quando Pollock já é reconhecido pela critica e lê no jornal a comparação que fazem com Picasso. Harris usa a composição dos planos, seguindo as entrevistas de Pollock, e coloca a personagem pintando em enquadramentos aéreos e sob seus pés que ao fazer as telas e pretende estar dentro dos quadros, assim como Clouzot e Picasso, e diz sentir-se como parte daquilo quando os faz, assim como o próprio Harris .

     Já o filme dirigido por Simon Curtis e produzido pela BBC films (o que me fez lembrar de documentários da BBC em alguns enquadramentos de flashback ) apresenta a história de uma sobrevivente do holocausto judeu e sua busca pela recuperação da memória de sua família, através de pinturas entre elas a obra que Gustav Klimt pintou de sua tia Adele: A Dama Dourada como é conhecida  em todo o mundo e faz parte da época dourada de Gustav Klimt. A perda de identidade da obra, enquanto lembrança familiar e tornando-se a identidade de toda uma nação é permeada por lembranças da fuga de Maria Altmam da Austria e  sua chegada aos EUA. Simon tem um elenco selecionado a dedo, fazendo uma comparação com Klimt , atores do alto escalão de hollywood como Hellen Mirren, Ryan Reynolds, Max Irons, Katy Holmes dentre outros rostos conhecidos e falas de personagem femininas sobre o papel da mulher, ou mesmo o papel ativo de Altman enquanto fogem da Áustria, fazem o papel do ouro usado por Klimt e a presença da figura feminina em suas telas. No filme algumas obras de Klimt fazem parte do testamento deixado para Altmam e acabam por ser o estopim para as lembranças do nazi-fascismo e  suas consequências e então questionando o  método com o que a galeria conseguiu ser detentora das obras, advinda de maneiras suspeitas pelas mãos dos nazistas, Altmam e seu advogado  enfrentam o estado austríaco pelo direito do quadro. Klimt já estava nas graças de famílias ricas que o contratavam para fazer retratos em 1907, e pinta o Retrato de Adele Bloch Bauer I  que acaba virando um ícone para a identidade Austríaca na atualidade, sendo como uma "Monalisa". Simon parece escolher seguir a risca os valores tradicionais da personagem de Hellen dando o valor sentimental e histórico da obra com luz e cenários sóbrios, muito bem colocados tecnicamente, com uma relação em especial a cor dos momentos entre passado e presente de Altmam, ficando mais brilhante e viva no decorrer do presente e  adquirindo mais cinza nas  memórias do passado. Curtis apresenta o decorrer histórico de uma obra. 

      Nos dois primeiros filmes fica em evidencia a relação arte e artista enquanto no terceiro obra e artista interferem por ser a peça chave no conflito apresentado. Com um documentário Clouzot monta uma fotografia e manipula o olhar de forma a criar uma aura de fantasia em torno do gênio Picasso e sua obra. Ed Harris constrói planos baseados nas falas de Pollock sobre sua pintura de ação propondo uma percepção visual por meio de imagens intercaladas, enquadramentos subjetivos e videos gráficos musicais. Curtis propõe sua narrativa através da luz e cenários compondo um resgate histórico do ambiente  cultural onde foram feitas algumas das últimas obras de Klimt. Os três filmes conseguem, de certa forma, captar alguma faceta dos artistas modernistas com o qual dialogam, na procura sobre o processo da obra, na recomposição das obras, ou no valor adquirido pela obra no decorrer do tempo.


* neto do pintor Jean Auguste Renoir

Texto por Thiago Moraes.


livros indicados:
Após o fim da Arte - Arthur Danto
Técnicas e edição para cinema e video - Dancyger